
“Themroc” foi um filme que chocou o público na década de 70 e que chegou mesmo a ser retirado das salas de cinema até aos anos 90. A companhia Suiça Kraut_Produktion não se esqueceu dele e fê-lo servir de inspiração para uma peça de teatro, “Back to the Roots” (TNDMII, 24/25 Julho’07)
Themroc é pintor de construção. Todos os dias, os mesmos gestos automáticos repetem-se: o pequeno-almoço, o tique-taque ensurdecedor do relógio, o olhar de desejo em fuga à irmã mais nova, a viagem de bicicleta e metro com o colega de trabalho até à fábrica. Certo dia, um dia igual a tantos outros, a vida de Themroc muda quando é apanhado em flagrante a espiar o ‘flirt’ do patrão com a secretária. Começa aqui a odisseia, magnificamente interpretada por Michel Picolli que, a partir deste momento, sofre uma mutação e transforma-se, entre o desespero e a euforia, num homem-besta.
Por pouco, quase nos parece ouvir a primeira frase da “Metamorfose” de Kafka que inicia a história do caixeiro-viajante, Gregor, que se transforma num insecto: "Uma manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco insecto". O processo é semelhante, sendo que Claude Faraldo faz Themroc regressar à sua origem animal, abandonando a era da civilização para regressar ao comportamento da idade da pedra. O protagonista passa a exprimir-se através de rugidos, uma espécie de língua inventada, de comportamentos animalescos, provocando e despertando espanto em todos com quem se cruza. Mais tarde, constrói uma caverna improvisada, onde se repetem orgias e o incesto.
Este filme, que se gosta ou não se gosta, é nitidamente um produto do seu tempo. Os anos 60 e 70, como período de grande mudanças sociais e culturais, fomentaram o sentido da rebeldia e abraçaram as noções anarquistas que se fizeram, alias, sentir no cinema francês deste período. Claude Faraldo não lhes foi alheio e assina a realização de um filme perturbador, controverso, salpicado de momentos de humor, sugerindo uma crítica aberta ao tipo de existência que a sociedade moderna oferece. “Themroc” canta o regresso a um estado de natureza, em detrimento dos mecanismos da sociedade de consumo, provoca, insulta, grita, confronta-nos com o absurdo.
Esta “falha” da sociedade é comum, por exemplo, a algum cinema europeu da Nouvelle Vague. Jean-Luc Godard, em “Week End” (1967) já o havia feito ao abrir caminho a um estilo mais politizado e desconstrutivista ao denunciar a sociedade consumista. É também nesse sentido que caminha Claude Faraldo criando cenas simbolicamente interessantes como aquela onde Themroc abre um buraco na parede do seu apartamento e começa a atirar bens de consumo para a rua. O regresso a um estado primordial da existência, que contrasta com a postura das figuras do poder, é corroborado nos primeiros vinte minutos do filme onde existe uma ausência total de diálogos. Esta visão satírica do mundo do trabalho é reforçada pela mutação através da linguagem. O filme assenta, sobretudo, no impacto dos vários efeitos visuais e a linguagem dá lugar a impulsos, sons e gritos.
Talvez possamos concordar, com alguma crítica, que, tal como o cinema desta época, estamos perante um filme “engagé”. Themroc, à sua maneira, é um militante de causas como a liberdade sexual, a contestação da autoridade opressiva e do poder desmesurado. Com um sabor amargo, no final, de raiva, que ecoa nos rugidos que vão compondo a banda sonora, “Themroc” assusta pela forma como nos mostra o carácter inumano que a sociedade adquiriu. Homem ou besta, a transgressão é a palavra-chave. Conformar-se ou não, eis a questão.
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